3ª Jornada de Leitura no Cárcere: reeducandas explicam como a imersão literária impacta sua realidade

A programação do evento, online e gratuito, com duração de três dias, tem o intuito de fortalecer o acesso ao livro e à leitura para pessoas privadas de liberdade, com especial foco na remição de penas

“Ler é uma forma de estar livre, o corpo está aqui, mas a mente está longe”, assim define A., 24 anos, sobre o poder de imersão que a leitura proporciona. Unidades prisionais do Acre participam da III Jornada da Leitura no Cárcere, evento de iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com o Observatório do Livro e da Leitura.

Entre 29 de novembro e 1º de dezembro, o encontro, online e gratuito, com transmissão ao vivo pelo canal do CNJ no YouTube, tem a finalidade de fortalecer o acesso ao livro e à leitura para pessoas privadas de liberdade, com destaque à Resolução CNJ 391/2021, que aborda a remição de pena por meio de práticas socioeducativas.

A programação dos três dias de evento, sempre no período da tarde, tem debates sobre o direito à leitura, clubes de leitura no cárcere, aplicação das resoluções do CNJ e conversas com escritoras egressas do sistema penal. A parceria do CNJ no evento ocorre no contexto do programa Fazendo Justiça, realizado com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e apoio do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) para incidir em desafios no campo da privação de liberdade.

A juíza-auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça do Acre (TJAC), Andrea Brito, participou como mediadora no dia 30, do painel com juízes que estão praticando a Resolução do CNJ n. 391 em suas comarcas, cujos participantes foram Liz Rezende (juíza-auxiliar Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Penitenciário – GMF – da Bahia), Hélio de Figueiredo Mesquita Neto (juiz-coordenador do GMF de Sergipe) e Cinthia Cibele juíza de Execução Penal de Mossoró no Rio Grande do Norte).

A Unidade Penitenciária do Quinari (UPQ/SG) participou da atividade educativa e assim oito reeducandos estão assistindo a programação. 

 

 

Na capital acreana também houve transmissão na Unidade de Regime Fechado Feminina de Rio Branco (URF-F/RB) e 16 reeducandas assistiram a programação numa sala de aula da Escola Fábrica de Asas, localizada dentro do Complexo Penitenciário Francisco de Oliveira Conde. 

O presidente do Instituto de Administração Penitenciária do Estado do Acre (Iapen), Glauber Feitoza, destaca a relevância da jornada para o sistema prisional. “É muito grande a importância de iniciativas como essa Jornada de Leitura, de fomentar as boas práticas no sistema prisional, pois no ambiente do cárcere há muitos desafios e o maior deles é o devido cumprimento da pena e a ressocialização. Então, o incentivo à leitura, agregar conhecimento, oferecer novas possibilidades para os apenados, é o maior objetivo para administração”, concluiu o presidente do Iapen.

Para o coordenador do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF) do TJAC, o juiz de Direito Robson Aleixo, reforça a obrigatoriedade do Estado em suprir essa necessidade aos internos. “Uma vez que é direito do apenado ter acesso à remissão e trata-se de obrigação do Estado prestar assistência, conforme a Lei de Execuções Penais. Convertendo-se, assim, em uma ilegalidade o não fornecimento de meios por parte do Estado”, concluiu.

Além de incentivo à ressocialização, algumas cumpridoras tomaram gosto pela leitura e relatam suas experiências pessoais, que decorrem de uma inspiração genuína do mundo literário. É o caso de R., 22 anos, que leu Iracema de José de Alencar. A narrativa é sobre um amor improvável entre uma índia e um português, no início do processo de colonização da costa brasileira, no século XVII. Desse romance nasceria o primeiro mestiço, símbolo de uma nova raça que seria o povo brasileiro.

R. contou que o primeiro contato com livros foi na prisão, por isso fala sobre um novo sentimento despertado entre as páginas: “ler ajuda a passar o tempo. Quando leio, vou me aprofundando na história e vou gostando. Tem livros que pego, penso que vai ser chato, mas quando começo a ler e entender, aí já fico “encegueirada” querendo ler toda hora. Eu nunca li um livro antes de vir pra cá. (Quando leio), fico imaginando como é a Iracema, o jeito dela, os lugares que ela ficava, a solidão que ela sentia pela falta do marido, enfim… além de que a leitura faz a gente viajar! A gente se desconecta de tudo mesmo estando dentro da cadeia”, finaliza.

 

 

O título escolhido por A., 24 anos, foi “Você é livre” de Dominique Torres. Um romance-reportagem sobre escravidão e liberdade. No Níger, país africano, Amsy e sua família são escravos de uma família de tuaregues, no deserto. Um retrato comovente da vida de muitas pessoas ainda submetidas a diferentes formas de escravidão em pleno século XXI.

A. também faz parte dessa parcela que está à margem da educação,  pois também nunca leu um livro antes de ir cumprir sua pena na prisão. Ela conta que começou a ampliar vocabulário e ter mais empatia com os personagens. “Ler desenvolve muito, tanto na leitura, como nas palavras que não conhecemos. Ler faz com que eu esqueça que estou aqui. Eu entro no livro quando estou lendo, penso no sofrimento dos personagens. Ler é uma forma de estar livre, o corpo está aqui, mas a mente está longe. A gente se imagina lá junto com o personagem”.

M., 23 anos, presa desde 2020 por tráfico de drogas, escolheu o livro Lucíola como companhia no cárcere. Publicado em 1862, Lucíola é uma ficção urbana do escritor brasileiro José de Alencar. Sob a perspectiva do personagem Paulo, recém-chegado ao Rio de Janeiro, é possível conhecer o relacionamento dele com uma cortesã do império por meio de cartas que ele envia à senhora G. M., nelas, recorda o passado e compartilha seus sentimentos mais íntimos a respeito de Lúcia.

M. mergulhou na história de tal forma que chorou com as reviravoltas do romance entre Lúcia e Paulo. Ela fala sobre como a leitura entrou em sua vida, as lições de vida adquiridas e como se desconecta do ambiente prisional. “No começo, eu não achava nada interessante na leitura, mas a cada página ia me interessando cada vez mais. A mensagem desse livro pra minha vida é que temos que aproveitar as oportunidades. Quando sair daqui, vou aproveitar muito todas as oportunidades. Às vezes a oportunidade passa na nossa frente, só que parece que temos uma venda e não a enxergamos. Se a oportunidade passa, depois a gente se arrepende por ter perdido. Então, pelo que entendi (do livro), a gente tem que aproveitar, temos que viver. Quando termino de ler, olho para o lado, volto a realidade, lembro que estou presa e bate uma tristeza”, completa M.

 

 

Escrevivências da Libertação

Outro destaque é o projeto Escrevivências da Libertação: reconstruções e redirecionamentos de trajetórias com mulheres negras em privação de liberdade na Jornada. Desenvolvido na Unidade de Regime Fechado Feminina de Rio Branco, o projeto nasceu a partir da necessidade de pautar e educação das relações étnico-raciais no sistema prisional para o público encarcerado, pois 80% dessa população é composta por pessoas negras. O foco inicial é com mulheres negras encarceradas, mas já está sendo ampliado o seu raio de alcance para o público LGBTQIA+, assim como se aproximando de outros públicos como os gestores e as policiais penais.

O objetivo principal da iniciativa é desenvolver o pertencimento, consciências e educação das relações étnico-raciais com mulheres negras em privação de liberdade através de “escrevivências”, isto é,  processos de leitura e escrita que perpassam as trajetórias de vida. Assim, promover o conhecimento e transformação por meio das experiências e memórias de outras mulheres, para que possam olhar pra si e reverem suas trajetórias – conexão que a leitura tem construído com maestria. 

Escrevivência é um termo criado pela escritora brasileira Conceição Evaristo que, a grosso modo, significa a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta. O projeto foi um dos 17 aprovados para receber recursos das penas pecuniárias, edital de 2022 da Vara de Execuções Penais e Medidas Alternativas da Comarca de Rio Branco.

 

 

Cláudia Marques de Oliveira é uma mulher preta, quilombola, afroindígena do povo Gurutubano, doutoranda, pesquisadora, ativista dos Direitos Humanos. Atuante na formação de professores no sistema prisional, coordenadora da Rede MulherAções, e uma das fundadoras do projeto Escrevivências.

A professora fala sobre o contexto e a essência do projeto: “Trazemos histórias de mulheres negras que são histórias de vida relacionadas ao pertencimento negro. Quando uma pessoa negra escreve, especialmente no contexto sobre pessoas negras, pode estar trazendo vivências da vida dela como também ficções”.

A docente fala ainda sobre a discrepância em trabalhar sobre o mesmo tema com mulheres na universidade e em situações periféricas. “Trabalhamos não só com a leitura e escrita, mas também com uma metodologia criada pela Rede MulherAções com as mulheres em privação de liberdade. Percebemos a dificuldade em desenvolver o pertencimento e fortalecimento de mulheres negras no contexto da universidade. Imagine com mulheres em situações periféricas dentro do sistema prisional? A maior parte delas tiveram pouco acesso a escolarização, logo, também a leitura”, afirma a professora.

 

Resolução CNJ n. 391/2021

Por ocasião do julgamento do Habeas Corpus n° 190.806, o ministro Ricardo Lewandowski, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu expressamente o direito à remição de pena pela leitura. Posteriormente, os procedimentos e diretrizes foram desenhados pela Resolução do CNJ nº 391 de 10 de maio de 2021. O documento salienta no artigo 5º, inciso V, que para cada obra lida corresponderá a remição de quatro dias de pena, limitando-se a até 12 obras efetivamente lidas e avaliadas anualmente, portanto, assegurando a possibilidade de remir até 48  dias por ano.

A consultora do programa Fazendo Justiça do CNJ, Pâmela Villela, enfatiza que a remição da pena tem impacto direto no que se refere à situação da superpopulação carcerária, especialmente no Estado do Acre, que ocupa a segunda posição entre as maiores taxas de encarceramento do país.

“Importante ressaltar a necessidade de o Estado empenhar esforços interinstitucionais e coordenados entre o Sistema de Justiça acreano com o Poder Executivo (Iapen), instituições públicas e a sociedade civil para a construção de um Plano Estadual de Esporte, Cultura e Leitura voltado ao sistema prisional do Acre, já que nesta nova resolução são consideradas para o cálculo da remição não só a educação regular e a leitura, mas também outros tipos de atividades educacionais, como as práticas educativas sociais não-escolares”, afirma. Logo, a Resolução n. 391 contemplou as atividades de socialização de natureza cultural, esportiva, capacitação profissional, saúde, entre outras.

Diante da situação criminalização da pobreza no Brasil, o perfil dessas pessoas privadas de liberdade demanda outras possibilidades para além da educação formal. Considerando a questão racial e social, dos 748 mil apenados do país, pelo menos 327 mil não completaram os nove anos do ensino fundamental e 20 mil são considerados analfabetos. Portanto, essas novas práticas tem potencial de motivar  o desenvolvimento humano, construir novas trajetórias e assim promover a ressocialização.

 

Elisson Nogueira Magalhaes | Comunicação TJAC

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