Artigo da Semana: “Modulação é uma ponte entre a realidade e a Constituição”

Por Fábio Martins de Andrade*

O instituto da modulação foi concebido como meio para que certas situações limítrofes existentes no quotidiano sejam adequadas aos relevantes preceitos previstos na letra (por vezes) fria da Lei Maior. Trata-se de um movimento, artificialmente criado, para aproximar e adequar a complexidade da realidade que, excepcionalmente, se apresenta ao julgador aos elevados ditames da Constituição da República, no tocante às regras e aos princípios nela explícitos e implícitos.

A importância da modulação consiste justamente na possível fluidez facultada ao julgador quando presentes situações limítrofes (e difíceis de resolver) e a necessidade de aproximar e adequar a complexa realidade que se lhe apresenta no julgamento aos princípios e regras constitucionais.

A ideia subjacente é sempre no sentido de trazer certa situação específica ao abrigo da Constituição. Integra, por óbvio, o crescente esforço de maior constitucionalização dos diversos ramos do Direito e das diferentes situações quotidianas que são rotineiramente apresentadas ao Poder Judiciário.

Nesse cenário, insere-se no atual contexto experimentado pelo ordenamento jurídico pelo recrudescimento do neoconstitucionalismo e do pós-positivismo. Com isso, busca-se o foco da máxima efetividade e da maior concretude do texto constitucional.

De fato, o instituto da modulação é mecanismo capaz de, por vezes, construir uma ponte entre a distante realidade fática complexa e a necessária aplicação da Constituição ao caso concreto. Essa construção ocorre no âmbito da interpretação em torno dos efeitos da decisão judicial.

A decisão judicial tem a função primordial de solucionar determinado litígio. Com isso, põe-se fim a uma disputa entre duas partes litigantes. Geralmente, uma parte sai vencedora e outra sucumbe como perdedora, a depender da robustez do direito invocado, das provas apresentadas e dos fatos narrados. Em outras situações, no entanto, aí a situação pode, excepcionalmente, mostrar-se de solução deveras complexa. Nesse contexto, verifica-se ainda maior aprofundamento de tal complexidade – e até paradoxo em certos casos – quando a interpretação e aplicação da Constituição parecem conduzir a uma solução demasiadamente injusta à luz do caso concreto então submetido ao Poder Judiciário.

No passado remoto, em razão da falta de alternativa doutrinária possível, muitas vezes a Corte Suprema via-se obrigada a relevar a mácula de inconstitucionalidade efetivamente verificada no caso concreto para tolerar a sua permanência no ordenamento jurídico em razão de injustiças ainda maiores que tal decisão poderia ocasionar.

Tantas foram as complexidades, os dramas e os meandros da vida como ela é, que diferentes mecanismos foram crescentemente construídos pelos tribunais constitucionais do mundo afora. Dentre tais instrumentos, destaca-se o instituto da modulação.

Atualmente, alguns países admitem a modulação como construção jurisprudencial erguida ao longo dos anos. Outros simplesmente positivaram a modulação na ordem jurídica, seja constitucional, seja legal.

É importante que o foco subjacente esteja sempre presente quando se fala no instituto da modulação. Presta-se a trazer ao abrigo da Constituição situações complexas e limítrofes da vida quotidiana (antes insolúveis ou de difícil solução).

Diante disso, excluem-se de sua aplicação os casos fáceis, aqueles que não requerem grande exercício hermenêutico na aplicação do Direito pelos magistrados. Os casos fáceis não devem chamar pelo instituto da modulação na solução dos casos que o Poder Judiciário deve julgar.

Quanto aos casos difíceis, geralmente atendem à ponderação dos princípios constitucionais antagônicos envolvidos para a solução da lide. Com o quadro fático formado, um (ou mais) princípio cede frente ao outro para melhor albergar a situação concreta ao texto da Constituição.

A importância da fluidez proporcionada pela ponderação dos valores na interpretação e aplicação da Constituição é fundamental para garantir a sua máxima efetividade e a sua maior concretude.

E que tipo de situações fáticas pugna por uma solução intermediária com o instituto da modulação?

Grosso modo, pode-se dizer que depende de razões de segurança jurídica. A pergunta subsequente é: o que é isso? Trata-se de um conceito jurídico indeterminado e que traz em seu bojo certa ambiguidade e até paradoxo. O quanto se quer aprofundar nesse conceito jurídico indeterminado? A doutrina brasileira só recentemente começou a esmiuçar a noção de segurança jurídica para decompor cada possível trecho ou faceta de sua multifacetada composição.

A segurança jurídica é tida como uma garantia fundamental, exercitável por direitos fundamentais assegurados em sede constitucional. Significa que se situa no Texto Constitucional no trecho referente aos direitos e garantias individuais e coletivos.

A ameaça à segurança jurídica pode se revelar em iferentes situações diante do Poder Judiciário. Uma delas que é geralmente aceita diz respeito à mudança repentina de jurisprudência anteriormente consolidada.

Aqui, vários exemplos poderiam ser colacionados para demonstrar como a mudança repentina de jurisprudência anteriormente consolidada gera enorme sentimento de insegurança nos jurisdicionados, com reflexo evidente no ambiente específico no qual atua a recente decisão.

Se cuidarmos de matéria tributária, uma reviravolta na jurisprudência de um Tribunal Superior (STJ ou STF) é capaz de gerar enorme insegurança aos contribuintes, ao Fisco, ao ambiente de negócios tanto no plano nacional como também internacional, a depender do tema envolvido.

Outra ameaça à segurança jurídica relaciona-se com o transcurso inexorável do tempo. Quando o tempo transcorre no mundo da realidade variadas consequências vêm ao seu reboque. Diferentes situações se consolidam ao longo do tempo. O comportamento das pessoas envolvidas caminha para certo sentido ou para outro, a depender da sinalização que se tem através da legislação pertinente, das decisões judiciais e do julgamento pelos Tribunais Superiores.

A ação inexorável do tempo, aliada à conhecida morosidade do Poder Judiciário no Brasil, onde o Supremo Tribunal Federal demora até doze anos para solucionar uma ação direta (em razão do desmesurado volume de casos submetidos ao seu exame), pode levar também à necessária proteção da segurança jurídica.

É necessário que o Estado passe a se ver como um prestador de serviço ao cidadão, a quem deve satisfação nos mais variados níveis. Quando isso ocorrer, aí o Estado-Juiz vai deixar de proteger o Estado-Legislador e o Estado-Administrador, servindo equivocadamente como uma segunda instância de governo, e passará a exercer a sua elevada função de enquadrar os excessos e arbítrios das razões de Estado tão alardeadas com argumentos ad terrorem e com pouco ou nem substrato jurídico. Aí sim, e só aí, o Estado de modo geral – e o Poder Judiciário de modo particular – estará a serviço da cidadania, imbuído na construção de uma sociedade mais fraterna e com maior Justiça Fiscal, ao invés de encobrir equívocos, abusos, excessos e arbítrios sob pretextos falaciosos e de pouca (ou nenhuma) valia jurídica.

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*Fábio Martins de Andrade é advogado, doutor em Direito Público pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e autor da obra “Modulação em Matéria Tributária: O argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF”.

Artigo publicado na Revista Consultor Jurídico, edição de 23 de setembro de 2012.

Assessoria | Comunicação TJAC

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