Artigo da Semana: “O sábio Frestão e a polêmica sobre a divulgação da remuneração dos servidores públicos”

Por Hugo Torquato*

Miguel de Cervantes (1545-1616) presenteou a humanidade com sua obra “Dom Quixote de La Mancha”, no ano de 1605.

O livro narra as aventuras de um homem que, apaixonado pelos chamados “Romances de Cavalaria”, experimenta o declínio de suas faculdades mentais e decide se tornar um cavaleiro andante, passando a imitar seus heróis favoritos e vivenciar uma série de aventuras, sempre desmentidas pela entediante realidade.

Em uma de suas batalhas, Dom Quixote se depara com dezenas de moinhos de vento, que supõe serem gigantes, transformados em moinhos por Frestão, o sábio feiticeiro. Mesmo alertado por seu fiel escudeiro Sancho Pança, Dom Quixote passa a atacar os moinhos, sempre dedicando a coragem de seu atos à sua amada, Dulcinéia del Toboso.

No Brasil, periódica e convenientemente, são apontados à população alguns inimigos públicos, a quem se atribui a responsabilidade pelas mazelas da sociedade. Neste momento de múltiplas (e majoritariamente justas) reivindicações salariais, os malfeitores escolhidos, mais uma vez, são os servidores públicos.

O feitiço para transformá-los em gigantes foi lançado no corpo do Decreto 7.724/2012, da lavra da Presidente da República, que determinou a divulgação, pela internet e de forma individualizada, da remuneração de cada um deles. A justificativa para o ato é a necessidade de controle, pela população, dos valores pagos aos servidores públicos. Há grande expectativa de que, de agora em diante, o Brasil experimentará uma nova fase no que concerne à moralidade nos gastos públicos.

A sociedade acompanha, curiosa, a identificação de cada inimigo. Afinal, tudo indica que os tais gigantes são os responsáveis pela má distribuição da arrecadação tributária no Brasil.

Já discordando deste ilusionismo, lanço a seguinte pergunta: a identificação dos rendimentos dos servidores públicos, de forma individualizada, é realmente uma medida que concretiza princípios de nossa Constituição?

A Lei 12.527/11 (Lei de Acesso à Informação) teve por objetivo regulamentar os artigos 5o, XXXIII (1); 37, §3o, II (2) e 216, § 2º (3) da Constituição da República, que tratam do acesso a documentos e informações da Administração pública.

Da análise destes dispositivos constitucionais, já se extrai uma primeira conclusão: o acesso a informações e registros administrativos é um direito que se condiciona à existência de quatro vetores. Identifico-os a seguir:

  • a) Existência de interesse, particular ou coletivo (art. 5º, XXX);
  • b) Inexistência de indícios de que o acesso à informação poderá mitigar a segurança do Estado ou da sociedade (art. 5º, XXX);
  • c) Não ocorrência de violação à intimidade, privacidade, honra ou imagem de alguém (art. 37, §3º, II c/c art. 5º, X);
  • d) Existência de necessidade (art. 216, § 2º).

Sob este prisma, não tenho dúvidas de que a Administração pública deve franquear à sociedade o acesso aos seus gastos com pessoal.

Contudo, considero que a identificação nominal do beneficiário da despesa, sem prévia comprovação de necessidade e atendimento a interesse individual ou coletivo, coloca o servidor público em situação de exagerada vulnerabilidade e fere, sem qualquer contrapartida razoável, seu direito à privacidade e à segurança, mostrando-se contrária aos valores constitucionais que norteiam o direito à informação.

Talvez tenha sido esta, aliás, a interpretação feita pelo legislador quando da elaboração da Lei 12.527/2011, ao deixar de normatizar o acesso individualizado aos valores percebidos por servidores públicos.

Vale ressaltar que este diploma legal, além de não determinar a divulgação dos nomes dos agentes públicos acompanhados de suas respectivas remunerações, inseriu no ordenamento jurídico pátrio o conceito de informação pessoal (art. 4, IV (4)) e determinou sua proteção (art. 6o, III (5)).

Importa enfatizar: considera-se pessoal a informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável (art. 4o, IV, da Lei 12.527/2011) e cabe ao poder público assegurar sua proteção (art. 6o, III, do mesmo diploma legal).

Se a identificação nominal do servidor e de seus vencimentos viola a Constituição da República e a própria Lei de Acesso à Informação, através de que feitiço ingressou em nosso ordenamento jurídico? Confundus (6)? Imperius (7)?

Malgrado a proteção à informação pessoal, o Decreto 7.724/12, “regulamentador” da Lei 12.527/2011, dispôs que:

Art. 7o  É dever dos órgãos e entidades promover, independente de requerimento, a divulgação em seus sítios na Internet de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas, observado o disposto nos arts. 7º e 8º da Lei nº 12.527, de 2011.

(…)

§ 3o  Deverão ser divulgadas, na seção específica de que trata o § 1o, informações sobre:

VI – remuneração e subsídio recebidos por ocupante de cargo, posto, graduação, função e emprego público, incluindo auxílios, ajudas de custo, jetons e quaisquer outras vantagens pecuniárias, bem como proventos de aposentadoria e pensões daqueles que estiverem na ativa, de maneira individualizada, conforme ato do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (grifei).

No Direito brasileiro, a diferença substancial entre lei e decreto está na aptidão daquela para inovar o ordenamento jurídico e deste para, tão somente, fixar as “regras orgânicas e processuais destinadas a pôr em execução os princípios institucionais estabelecidos por lei, ou para desenvolver os preceitos constantes da lei, expressos ou implícitos, dentro da órbita por ela circunscrita, isto é, as diretrizes, em pormenor, por ela determinadas” (8).

Neste diapasão, o Decreto 7.724/12, dado o seu caráter de secundariedade normativa, subordina-se à lei que regulamenta, e, nestes moldes, não poderia ter expedido qualquer comando contra, extra, praeter ou ultra legem, não sendo, portando, aplicável no que tange à divulgação individualizada das remunerações.

É claro, repito, que a Administração deve tornar públicos todos os seus gastos com pessoal, permitindo que qualquer pessoa possa identificar fraudes ou erros, devendo respeito, no entanto, aos princípios constitucionais e limites legais que regem a matéria.

Observo, entretanto, que a medida, mesmo irregular, tem arrancado previsíveis aplausos dos mais diversos seguimentos sociais. Foi bem orquestrada e lança ao povo os inimigos que o momento político exige, conduzindo os brasileiros a mais uma batalha contra moinhos de vento.

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NOTAS

(1) XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

(2) § 3º – A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII.

(3) § 2º – Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.

(4) IV – informação pessoal: aquela relacionada à pessoa natural identificada ou identificável.

(5) Art. 6o  Cabe aos órgãos e entidades do poder público, observadas as normas e procedimentos específicos aplicáveis, assegurar a: (…) III – proteção da informação sigilosa e da informação pessoal, observada a sua disponibilidade, autenticidade, integridade e eventual restrição de acesso.

(6) Confundus: “É um feitiço para confundir a mente da vitima de varias formas diferentes, o feitiço pode ser usado de inumeras maneiras, seja para fazer alguem errar oque ia dizer, ou se confundir durante um duelo, é um feitiço que envolve a confusão mental rapida de alguem, é considerada uma magia de alto nivel, pois pode ser usada legalmente, e com muita capacidade, é quase como um Imperius” (De Wikipedia, “Lista de feitiços em Harry Potter”).

(7) Imperius: “Permite a quem conjurou o feitiço controlar as vontades de seu inimigo,podendo obrigá-lo a fazer coisas desde uma reverência,até mesmo a se tornar um aliado. Harry descreve como uma sensação de profundo relaxamento, em que não a nada, nenhuma preocupação, a única coisa presente é a voz do conjurador do feitiço mandando o enfeitiçado fazer o que ele manda” (De Wikipedia, “Lista de feitiços em Harry Potter”).

(8) MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios Gerais de Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 353. v. I.

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Hugo Barbosa Torquato Ferreira é Juiz de Direito no Estado do Acre. Atualmente é titular da Comarca de Assis Brasil e responde, concomitantemente, pela Vara Criminal da Comarca de Brasiléia. Foi advogado e agente da Polícia Federal. Autor dos livros “Questões cíveis enfrentadas pelo STF e pelo STJ em 2007” (ISBN: 978-85-7716-414-1) e “Questões Criminais enfrentadas pelo STF e pelo STJ em 2007” (ISBN: 978-85-7716-415-8). E-mail para contato: hugotorquato@hotmail.com.  

Assessoria | Comunicação TJAC

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