Artigo da Semana: “O problema não está na Lei Seca, mas em sua interpretação”

Por Fábio Osório*

No direito sancionador como um todo, vigora o princípio da tipicidade estrita, correlata ao devido processo legal e ao princípio de interdição à arbitrariedade dos Poderes Públicos. Essa tipicidade está longe de confundir-se com interpretação lógico-gramatical. As teorias linguísticas já sepultaram qualquer possibilidade de prevalência do sentido meramente literal das palavras em detrimento de significantes mais amplos. As leis são feitas de palavras e traduzem um discurso. Daí a razão pela qual devem ser (re)interpretadas, testadas e contextualizadas. Os valores, os fins, as consequencias, devem ser aquilatadas, num sistema complexo.

A teoria da tipicidade evoluiu no sentido de albergar a teoria do bem jurídico ou da proteção de valores inerentes à vigência da norma. E está submetida à lógica dos direitos fundamentais, inclusive daqueles que são vítimas dos ilícitos. A norma nasce vocacionada à proteção de direitos fundamentais e por isso mesmo está legitimada a incidir sobre outros direitos fundamentais (dos investigados, acusados, condenados). Deve fazê-lo numa perspectiva proporcional e razoável.

É necessário interpretar as normas sancionadoras à luz dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, da segurança jurídica e dos direitos fundamentais, aquilatando os valores que lhes são imanentes, os fins a que se destinam, as opções hermenêuticas disponíveis e suas consequencias.

O Superior Tribunal de Justiça decidiu que não se pode presumir a presença de embriaguez ao volante, sem um grau de certeza absoluta, na interpretação gramatical e literal do artigo 306 do CTB. Todavia, quando podemos afiançar um grau de certeza realmente absoluta? E se o bafômetro estiver quebrado, ou funcionando mal? E se o bafômetro não tiver sido objeto de controle pelos órgãos técnicos, no período exigível? O próprio STJ adverte: pode-se reformular a lei para torná-la um pouco mais elástica, mas, em sendo fechado o tipo, imperioso seguir à risca sua formalidade.

Será mesmo necessário reformar esse artigo 306 do CTB? Não virá algo muito pior pela frente? Por exemplo, veja-se que já é possível cogitar de uma lei que proíba, sem qualquer critério quantitativo, a condução de veículos, após ingestão de qualquer quantidade de bebida alcoólica. Nesse caso, até mesmo um inocente copo de cerveja poderia transformar-se em causa para a incriminação. E o arbítrio das autoridades poderá expandir-se.

O padrão de certeza absoluta não pode ser aferido, na imensa maioria dos casos, a partir de meras presunções das autoridades, sem motivação adequada, esta deveria ser a essência da decisão do STJ, a ser devidamente elaborada. A presunção de legitimidade do ato sancionador não é absoluta e jamais poderia servir, automaticamente, como fonte de presunção contrária ao suposto infrator. Penso que esta seria uma interpretação possível e necessária, porque, em nossa tradição, a palavra de uma autoridade pública valeria muito mais do que todo um contexto favorável ao cidadão.

O problema não está na lei, mas em sua interpretação. Deve-se diferenciar o texto (legislador) da norma (decisor). Deve-se exigir muito mais dos operadores jurídicos, cujos raciocínios, em suas decisões, não raro adentram o terreno do arbítrio criativo. E parece mesmo que o STJ pretende reagir: não é possível que os juízes transformem-se em legisladores, para fins de ampliar os tentáculos das leis penais. Estamos de acordo com esta ideia. A lei impõe limites aos julgadores, em razão de sua legitimidade democrática. A lei interdita o arbítrio dos julgadores. Sem leis abstratas e gerais, não haveria isonomia nem justiça.

Quem bebe algumas cervejas, algumas taças de vinho, ou consome algum nível de bebida alcoólica, certamente não poderia e não deveria conduzir veículos em vias públicas, mas há situações que são diversas umas das outras. O texto deve ser remetido a um contexto. E o fato de alguém conduzir um veículo, após um copo de cerveja, conquanto pudesse não ser recomendável, certamente não seria passível de tipificação penal.

A interpretação literal não é satisfatória desde o Código Napoleônico. Ela não se sustenta nas sociedades complexas em que vivemos. Repare-se no efeito sistêmico desta espécie de interpretação, em se tratando de Direito do Trânsito: o legislador poderia contemplar instrumental apto a coibir embriaguez ao volante, como fotos, filmagens? Deveria o legislador prever a obrigação de uma autoridade fiscalizadora consignar a motivação aduzida pelo cidadão para negar-se à submissão de um bafômetro?

A questão é basicamente esta: os limites estreitos da interpretação lógico-gramatical conduzem a paradoxos insuperáveis. A lei traz consigo potencialidades e limites. Se a exigência de discriminação das presunções constasse da lei, qualquer novo meio tecnológico correria o risco de ser descartado, por falta de previsão legal. A previsão de alguns meios tornaria os demais proibidos, a prevalecer uma interpretação literal. Como se vê, essa metodologia, sem qualquer dúvida, é deficiente.

Vivemos a época do Direito Dúctil, realmente. Uma época de incertezas e de necessária confiança nos juízes e nos operadores jurídicos. O problema é que muitos operadores — não raro, aqueles que sequer detém um preparo técnico adequado — atuam arbitrariamente. E quanto maior o espaço que se lhes reserva, maior o grau de arbítrio na limitação da liberdade alheia. O arbítrio administrativo ou judicial é fenômeno odioso.

Assim, a decisão do STJ, quanto aos valores que busca preservar, tenta frear o arbítrio estatal. Mas, paradoxalmente, seus reflexos podem ampliar esse mesmo espectro de arbitrariedade. A rastreabilidade das decisões — judiciais ou administrativas — não é um tema que ocupa lugar central na teoria do direito, mas vem ganhando expressão. A exposição dos valores, critérios, fins, consequencias, bases ideológicas, não é uma prática comum no meio forense, e muito menos nas instâncias administrativas (em sua maioria). Aplica-se a lei ao caso concreto, pura e simplesmente. Não se explicitam todos os elementos subjacentes à lei, que lhe integram o (con)texto.

___________________

*Fábio Medina Osório é advogado, doutor em Direito Administrativo e ex-secretário adjunto da Secretaria da Justiça e Segurança do Rio Grande do Sul.

Artigo publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico, edição de 10 de junho de 2012.

Assessoria | Comunicação TJAC

O Tribunal de Justiça do Acre utiliza cookies, armazenados apenas em caráter temporário, a fim de obter estatísticas para aprimorar a experiência do usuário. A navegação no portal implica concordância com esse procedimento, em linha com a Política de Privacidade e Proteção de Dados Pessoais no Sítio Eletrônico do Poder Judiciário do Estado do Acre.