Artigo da Semana: ‘Primavera brasileira?’

Primavera brasileira?

Por Giordane Dourado*

A palavra intolerância evoca sentimentos negativos. Quando se atribui a alguém o adjetivo de intolerante, projeta-se a imagem de uma pessoa negativa, atrasada, que no mínimo flerta com o autoritarismo ou adere a ações contra as minorias. Ninguém gosta de ser chamado de intolerante.

A expressão tolerância, por outro lado, no senso comum está associada ao círculo das virtudes. A figura do cidadão tolerante reflete aquele com consciência social, pacificador e engajado na inclusão dos marginalizados. Na esteira do politicamente correto, ser tolerante é ser legal.

Como a relatividade da vida nos prega boas surpresas, nos últimos meses um sentimento pulsante de intolerância vem aparentemente conquistando a atenção e simpatia de expressiva parcela da população. A mídia passou a noticiar que a sociedade, cansada de ser saqueada por agentes empenhados no enriquecimento pessoal a expensas do patrimônio coletivo, ensaia forte reação pública de repúdio ao fenômeno da corrupção.

Falar da corrupção no Brasil é tão banal quanto comentar sobre o calor nos países tropicais. Temos a impressão de que ela sempre existiu, aumentou com o passar dos anos e conquistou certa postura de resignação do povo, convencido de que é inútil ou pouco eficaz lutar contra.

Ao cabo de qualquer pesquisa sobre a opinião dos brasileiros quanto ao combate à corrupção, muitas respostas serão inflamadas e apaixonadas, num coro coletivo de revolta em relação à desonestidade reinante no Poder Público. Mas, sinceramente, o discurso está a léguas de distância da prática.

Por mais pessimista que seja essa observação, sabe-se que a corrupção, apesar do fracasso da crítica, é um sucesso de público. E não falo aqui tão-somente daquela corrupção mostrada nos meios de comunicação, onde o malandro é flagrado com o dinheiro na cueca ou recebendo fartos pacotinhos de reais [ou dólares, ou euros]. Refiro-me à corrupção como exercício diário de contaminação da consciência.

O corrupto é velho conhecido do brasileiro. Desde as primeiras lições de história do Brasil, percebe-se que a formação do nosso povo foi generosa no abrigo de escroques e aventureiros em busca do enriquecimento rápido, sem muitos calos nas mãos ou suor na fronte. O ganho fácil no Brasil é mais tentador que a maçã no Jardim do Éden.

Nesse caldeirão social e cultural, a corrupção, em maior ou menor dimensão, foi se disseminando no cotidiano. A expressão mais “carinhosa” para designar esse fenômeno é “jeitinho brasileiro”, tantas vezes utilizada em tom jocoso ou até com certo orgulho pelo interlocutor. O “jeitinho brasileiro” denota a tendência histórica de se desviar do que é reto.

Sem meias palavras, é fato que o povo brasileiro culturalmente é tolerante à corrupção nas suas mais diversas formas, seja na venda do voto, na propina paga ao servidor ou na simulação do preço de venda de um imóvel para pagar-se menos tributo.

Interessante questionar, ainda que em tom de filosofia de boteco: honestidade é valor absoluto ou é razoável afirmar que existe alguém “meio-honesto”? O corrupto certamente tem a resposta pronta, lapidada.

Concebido no ambiente de promiscuidade entre o público e o privado, o corrupto profissional deixou o constrangimento de lado e tornou-se um descarado, que usa óleo de peroba como hidratante facial e comumente se esconde sob o verniz do assistencialismo. A impunidade é a esperança que lhe inspira e motiva para o “trabalho”.

Como toda conduta tem um custo, a corrupção também cobra o seu. E não é barato. O interessante é quem paga a conta. É óbvio que o altíssimo custo da corrupção não é repassado aos que dela se beneficiam. O débito é do cidadão comum, principalmente daquele indiferente à pilhagem do Erário.

A conta apresenta-se em várias faturas. Ela está na ausência do remédio no posto de saúde, na lama das ruas sem pavimentação, nas cadeiras empoeiradas e quebradas das escolas públicas, entre outras criativas formas de cobrança.

Será que o custo ficou insuportável a ponto de motivar as recentes manifestações coletivas contra a corrupção? Talvez o fator econômico seja uma das explicações nessa complexa equação.

Com o crescimento da economia e a ascensão de classes do trabalhador, as pessoas passam a viver melhor; por consequência, fica mais perceptível o legado da corrupção no país. Sim, quando o padrão de vida sobe as carências tornam-se mais nítidas.

Apesar do sombrio diagnóstico dos efeitos da corrupção sobre a salubridade [e sanidade] nacional, é desolador observar que a repressão às ações dos corruptos no país seja tão claudicante, tanto por parte da sociedade, que continua elegendo os gatunos, como pelo Poder Público, anêmico na punição dos agentes ímprobos.

A legislação também não ajuda no combate à praga. O crime de corrupção eleitoral, por exemplo, que consiste na comercialização do voto (art. 299 do Código Eleitoral), tem pena máxima de quatro anos de reclusão. É difícil digerir que esse delito, capaz de corroer o próprio regime democrático, seja punido com a mesma sanção privativa de liberdade do crime de transmissão intencional de doença venérea, previsto no artigo 130, § 1º, do Código Penal.

De qualquer forma, provoca uma animação juvenil presenciar a reação popular mais efusiva nas ruas, na imprensa e nas redes sociais contra as ratazanas que zombam dos cidadãos honestos. Resta saber se é apenas a manifestação da moda ou se realmente, após anos de incidência nestes trópicos dos ventos gelados da corrupção, as sementes da primavera terão chance de florescer.

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*Juiz de Direito do Estado do Acre e Diretor de Assuntos Jurídicos da Associação dos Magistrados do Acre (ASMAC).
 
 
 
Assessoria | Comunicação TJAC

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