Depoimento Sem Dano: Justiça do Acre realiza primeiras audiências para inquirição de crianças e adolescentes

A Vara da Infância e da Juventude e as Varas Criminais da Comarca de Rio Branco já utilizam as técnicas do projeto Depoimento Sem Dano (DSD) e a estrutura montada para sua execução no Fórum Criminal da Capital. Por meio desse projeto, o atendimento de crianças e adolescentes que precisam ser inquiridos nos processos judiciais, especialmente nos relacionados a abuso sexual, acontece de modo bastante diferenciado.

No último mês de outubro, foram realizadas as primeiras audiências no referido espaço: uma pela 4ª Vara Criminal, envolvendo uma menina de cinco anos de idade, e duas pela Vara da Infância e da Juventude, envolvendo uma menina de 10 anos e um menino de 8 anos. A primeira foi realizada pelo Juiz Cloves Cabral e as outras duas pelo Juiz Luis Camolez.

De acordo com a psicóloga Rutilena Roque Tavares, da Vara da Infância, que acompanhou as crianças das três audiências, a utilização da estrutura proporciona mais segurança ao conteúdo das informações obtidas durante a inquirição da vítima, o que não ocorre quando o depoimento é prestado em ambiente comum.

"Na sala de Depoimento Sem Dano, a criança não se sente pressionada, constrangida ou com medo de falar. É um ambiente especialmente preparado para esse tipo de trabalho", explica a psicóloga.

O Depoimento Sem Dano é um método por meio do qual a vítima conversa com uma psicóloga ou assistente social numa sala especial, com decoração diferenciada e brinquedos, ao passo que, na sala de audiência, utilizando equipamentos audiovisuais, juiz, promotor e advogados assistem à entrevista judicial pela televisão. As perguntas são feitas por intermédio da profissional da equipe psicossocial, seguindo uma técnica especialmente elaborada para esse tipo de depoimento.

O projeto é uma iniciativa pioneira da 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, iniciado em 2003, e hoje difundido em vários Tribunais de Justiça, como São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, Rondônia e Acre. Países como França, Espanha e Argentina também têm práticas semelhantes nessa área, que já foram inclusive incorporadas à legislação.

Vantagens do Depoimento Sem Dano

Nas inquirições tradicionais, muitas vezes o juiz começa a audiência perguntando diretamente a respeito do abuso sexual, sem conversar antes sobre outros assuntos. Ou seja, ele não estabelece um vínculo de confiança com a criança, não se mostra interessado nela, nem deixa claro que a responsabilidade pelo que aconteceu não é dela, o que contribuiria para um bom depoimento e para não causar danos secundários à vítima.

Por outro lado, especialistas no assunto afirmam que no Depoimento Sem Dano, por não estar dentro da sala de audiência, a criança é poupada das questões impertinentes que costumam ser feitas, já que é possível filtrar as perguntas direcionadas a ela.

A vítima também fica afastada do embate jurídico entre juiz, promotor e advogados, que é bastante freqüente em uma audiência e costuma ser tenso. Se a criança presencia esses conflitos, que fazem parte do processo, isso pode prejudicar a continuidade do depoimento e aumentar os danos para ela.

Outra vantagem importante é que, diferentemente do laudo psicológico, o depoimento dessa forma garante princípios constitucionais, como o direito ao contraditório e à ampla defesa. Além disso, a audiência fica registrada para ser revista quantas vezes for necessário, inclusive quando o caso estiver em segunda instância, no Tribunal de Justiça.

Como funciona o Depoimento Sem Dano

Nesse modelo, a inquirição é feita em três etapas. Na primeira delas, chamada de "acolhimento inicial", a criança e o responsável chegam meia hora antes da audiência e são recebidos pela psicóloga ou assistente social, para evitar um encontro indesejado com o réu, o que poderia prejudicar o depoimento e traumatizar a vítima.

A técnica inicia um processo de aproximação, abordando assuntos diversos da vida dela, para deixá-la à vontade. Conversa também com o acompanhante, nomeado de "pessoa de confiança", que normalmente é a mãe, para saber sobre a situação social e psicológica da criança. Tudo isso dentro de uma sala que se diferencia do ambiente tradicional do fórum, por ter decoração especial e lúdica, monitorada por equipamentos de som e imagem.

A profissional passa então a explicar ao depoente, sempre numa linguagem acessível ao estágio de desenvolvimento em que ele se encontra, o que está fazendo ali e como vai ser a audiência. Por fim, procura saber quais as palavras utilizadas pela própria criança para se referir aos genitais feminino e masculino para, no momento da inquirição, ter certeza de que está sendo clara, compartilhando do vocabulário infantil específico.

Na segunda etapa, a do depoimento em si, são abordados os fatos contidos no processo. Nesse momento o profissional da equipe psicossocial procura ajudar a criança a relatar o ocorrido, utilizando diferentes tipos de pergunta, com preferência às questões abertas, para que ela fale mais espontaneamente sobre o assunto, sem induzi-la a nada.

O juiz passa a fazer questionamentos, seguido do promotor e do advogado de defesa, todas intermediadas pelo técnico, que vai adequando-as ao universo infanto-juvenil. Depois de transcrito, o depoimento é juntado aos autos do processo, juntamente com o relatório elaborado pelo técnico que acompanhou a inquirição.

Se a criança não consegue contar o que aconteceu, podem ser utilizados alguns instrumentos auxiliares, como fantoches e outros bonecos. Nesse caso, a criança assume um personagem para ficar mais fácil para ela falar como se fosse outro. Se a criança está com muita dificuldade de verbalizar, com a utilização dos bonecos e por meio de gestos, ela demonstra as situações e a câmera consegue acompanhar os seus movimentos.

Num terceiro momento, finalizada a inquirição, já com aparelhos de som e vídeo desligados, a pessoa de confiança é chamada para uma nova conversa, em que, junto com a vítima, é feita uma avaliação do depoimento. Ao invés de a vítima ser dispensada depois da audiência, sem qualquer outro contato com o sistema de Justiça, como ocorre no modelo usual, o Depoimento Sem Dano vai além. Se a técnica percebe que a criança está apresentando visíveis dificuldades, encaminha para atendimento especializado gratuito, junto à rede de proteção, pois a metodologia do Depoimento Sem Dano busca não apenas a prova, mas também a proteção da criança.

Nesse processo, o papel da assistente social ou psicóloga durante a audiência é de facilitar o depoimento da criança, de ajudá-la a ficar mais à vontade para falar sobre assuntos constrangedores para ela, numa postura de cuidado e acolhimento. A forma diferenciada para coleta do depoimento de crianças e adolescentes reduz os danos causados a eles, assim como faz valer a garantia dos direitos desses atores no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Capacitação profissional

A capacitação de todos os envolvidos no processo – juízes, promotores, advogados, assistentes sociais, psicólogos, conselheiros tutelares e servidores da Justiça – é considerada etapa fundamental para o bom desenvolvimento do método, pois conhecer a dinâmica do abuso sexual e suas características particulares não só melhora a qualidade da prova como também ajuda a proteger a vítima e restaurar a sua dignidade.

Pensando nisso é que em maio deste ano o Tribunal de Justiça e a Escola Superior da Magistratura do Acre promoveram o seminário e curso “Depoimento Sem Dano – uma alternativa para inquirir crianças e adolescentes nos processos judiciais”, cujo objetivo primordial foi apresentar o projeto e capacitar os profissionais envolvidos na utilização dos recursos disponíveis na sala de Depoimento Sem Dano, instalada em 2007 no Fórum Criminal da Comarca da Capital.

O projeto do DSD no Acre

A idéia do projeto no Acre surgiu no ano de 2006, durante a gestão do Desembargador Samoel Evangelista na Presidência do TJAC (2005-2007), quando foi formalizada uma parceria do Tribunal com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH), para sua implementação. Isso ocorreu a partir das sugestões da Juíza Maria Tapajós, à época titular da Vara da Infância e da Juventude de Rio Branco, e do Promotor Francisco Maia, que atua na unidade.

Posteriormente, o projeto seguiu na gestão da Desembargadora Izaura Maia (2007-2009), que assegurou a montagem da estrutura física e dos equipamentos necessários ao seu desenvolvimento. Atualmente, na gestão do Desembargador Pedro Ranzi (2009-2011), após a fase de capacitação da equipe multiprofissional, o método está em plena execução.

 

Leia mais:

Confira também:

  • A edição do Judiciário em Foco de Abril/2009 traz matéria especial sobre o tema: "Depoimento Sem Dano – Novo projeto do TJAC busca diminuir efeitos negativos do depoimento infanto-juvenil".

Assessoria | Comunicação TJAC

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